“Há uma linha tênue entre a
autoconfiança e a arrogância. Por vezes, uma sobrepõe a outra, quase imperceptivelmente.
Controlar esses dois conceitos distintos e ao mesmo tempo tão próximos é um
desafio que, se bem sucedido, torna-se um grande aliado em qualquer batalha,
física ou psicológica. Mas, afinal, seria isso um defeito ou uma qualidade? Há
quem diga o contrário, contudo, para mim, essas são qualidades indispensáveis
para qualquer guerreiro e, portanto, indispensáveis para mim. Ora, como eu poderia
atirar uma flecha a 30 metros de distância, com visão deturpada e vento a favor
do alvo sem autoconfiança? Seria o mesmo que um guerreiro empunhar uma espada
sem a força necessária para utiliza-la. O fracasso e, consequentemente, a morte,
seria questão de tempo. Calion me ensinara bem e, com o tempo, a autoconfiança
surgiu naturalmente. Eu me sentia capaz de tudo. Eu era o melhor no que fazia,
definitivamente. Bom, pelo menos, era como eu me sentia até o momento em que
resolvi me aventurar naquela caverna. Lá, pude perceber que, de fato, eu até poderia
ser o melhor no que eu fazia, dentre as minhas experiências vividas até ali, porém,
ainda havia muito que aprender. Eu conhecia apenas na teoria as cavernas. Sabia
de suas estruturas e de algumas aberrações que lá viviam. Mas nunca havia
adentrado e muito menos batalhado dentro de uma. A minha visão, que me
diferenciava de muitos, não me ajudava ali. A minha estratégia de lutar em
campo aberto e aproveitar a natureza a meu favor não servira até o momento. A
minha independência em batalha, oriunda da minha versatilidade e motivo da
minha autoconfiança (ou arrogância) mostrou-se frágil naquele local. Além de
perceber que eu ainda precisava aprender muito para ser metade do que meu
mentor foi, lembrei-me de que precisei ser salvo mais de duas vezes por humanos.
Naquele momento, eu aprendi algo que até então era desconhecido para mim,
talvez escondido entre os meus sucessos em missões e minha raiva incubada. Naquele
momento, eu aprendi o significado de humildade.
Após sermos surpreendidos pela
ousadia dos goblinóides em nos emboscar na entrada da caverna, voltamos para o
lado de fora a fim de reagruparmos e reanalisarmos o cenário. Era hora de
traçarmos uma estratégia diferente. Percebemos que havia algumas ferramentas,
se assim podemos chama-las, a nosso favor. Havia metade de uma estrutura de
fácil locomoção, com quatro bestas leves presas prontas para atirar ao mesmo
tempo com um único puxar de corda. Havia também duas lanças longas e dois pequenos
goblins. Conversamos rapidamente e decidimos que o anão e o sacerdote iriam à
frente, empunhando as lanças com as pequenas aberrações presas na ponta de cada
uma delas. No outro braço, carregariam o escudo levantado. O mago iria carregar
a engenhoca e eu iria à retaguarda, com meu arco e flechas de fogo preparadas.
Em relação a luz, amarramos com pedaços de tecido a lanterna furta fogo ao
corpo do goblin preso na lança de Oskar. Seguimos adiante.
Conseguimos andar uma boa parte
da caverna sem complicações ou sinais de uma nova emboscada. Paramos por um
momento para o guerreiro descansar o braço e, nesse momento, tive a clara
impressão de ouvir movimentação à frente. Avisei aos outros com um aceno de
cabeça e continuamos, com cautela redobrada. Estávamos chegando ao lago onde
anteriormente eu havia sido atacado por uma serpente gigante e salvo pelo
sacerdote. Os sons vinham do corredor à esquerda, após a curva acentuada que
teríamos de fazer. Oskar informou-nos, com sussurros quase inaudíveis, que iria
se aproximar da curva e colocar a lança com o goblin e a furta fogo no campo de
visão do outro corredor, assim poderíamos ouvir algo se houvesse alguma reação.
Silêncio. Foi isso o que ouvimos. Não houvera reação alguma, portanto, os sons
de movimentos que eu ouvira anteriormente estavam mais a frente. A acústica
daqueles corredores naturais dificultava a percepção da distância entre a nossa
posição e a origem dos ruídos. Todos assentiram com um leve movimento de cabeça
e continuamos. Realizamos a curva acentuada lentamente, quase que aguardando um
ataque assim que adentrássemos no próximo corredor. Segundos de tensão se
passaram e assim que ficamos no ponto de visão da escadaria que descia após a
curva, respiramos aliviados, pois, nada havia acontecido e o caminho estava livre
naquele local. Assim que eu baixei meus braços e aliviei a tensão da corda do
meu arco, soltei a respiração com um leve suspiro. Quando dei o primeiro passo
para seguir adiante, senti um peso em minhas costas e uma dor excruciante. Em
seguida, caí no chão, sem forças para me mover. Antes de cair, pude perceber
algo nas costas de Edwin, que estava bem a minha frente: uma aranha gigante. O
que aconteceu a seguir ainda é uma série de cenas confusas para mim, como flashes, pois, embora eu não tivesse
forças para me mover, muito menos para falar, eu estava consciente, conseguia
ver e ouvir tudo o que acontecia ao meu redor. Pude perceber, antes de sucumbir
à picada do inseto gigante, o mago tirando a criatura das suas costas e
lançando-a para trás, próximo a mim. Já no chão, vi Oskar tentando correr em
nossa direção para nos ajudar, mas, não conseguir por falta de espaço no
estreito corredor. Percebi também a aranha que havia picado o mago pulando
novamente em direção a ele. De repente, não via mais eles. Apenas uma parede a
minha frente. Percebi que estava sendo arrastado pela aranha que me atacara. Se
o que eu sabia sobre as aranhas estivesse certo, ela me levaria para o seu
ninho, me enrolaria sob uma manta de teia e me deixaria ali até a hora em que
ela precisasse se alimentar. Eu era sua presa, seu alimento. Sabia que eu ainda
tinha um certo tempo, pois, ela não me comeria agora. Bom, eu queria acreditar
nisso, afinal, era minha única chance de sair vivo. Lembro-me que foi
exatamente isso que aconteceu, ela me levou rapidamente para seu ninho, um
buraco não muito grande do outro lado do lago de onde surgira a serpente que quase
me matou em outra ocasião. Cobriu-me com sua teia, girando-me com suas patas e,
em seguida, pendurou-me de cabeça para baixo a frente do seu ninho. Eu fiquei
ali, no escuro, balançando e, por vezes, girando, ouvindo os sons distantes da
briga entre meus companheiros e a outra aranha e os ruídos que a minha
predadora fazia. Era assustador. Alguns minutos se passaram e, de repente, uma
forte luz iluminou o covil dos aracnídeos. Percebi rapidamente que era um local
não muito grande, com dois buracos nas paredes ao meu redor, onde presumi serem
os ninhos das duas aranhas gigantes. O chão, repleto de teias e ossos. Quando
olhei para frente, em direção à entrada do pequeno covil, vi a silhueta de um
humano e quando meus olhos se adaptaram a luz vinda daquela direção, percebi
que era Eobald parado, em pé, com sua maça na mão pronta para acertar a aranha que
a essa altura estava saindo do ninho e pulando em direção a ele. Não pude ver
se ele acertou ou o que aconteceu a seguir, pois, meu corpo virou-se para o
outro lado. Quando voltei, o inseto gigante estava com a lateral machucada, o
sacerdote havia acertado o golpe, mas, ela estava em cima dele, atacando-o
ferozmente. Meu corpo virou-se novamente. Segundos de angustia passaram-se até
meu corpo retornar a posição que me permitia ver o que acontecia e o que eu vi
foi o corpo do sacerdote no chão, sem reação, e a aranha pronta para mata-lo.
Por mais que eu tentasse, por mais que me esforçasse, não conseguia me mover.
Queria saltar em direção àquela aberração e mata-la com minhas próprias mãos! Não
suportaria o fato de que alguém morresse tentando me salvar! De repente, no
exato momento em que a aranha investiu contra Eobald, uma luz percorreu o salão
rapidamente e chocou-se contra o grande inseto, que se encolheu e tombou ao
lado do sacerdote. Ao olhar para o outro lado do salão, percebi Edwin,
debilitado, segurando-se em uma estalagmite. Ele utilizara a pouca força que ainda
restava em seu corpo para salvar as nossas vidas. Oskar chegou segundos depois
no covil, utilizou uma poção que Bastur havia nos dado dias antes para reanimar
o sacerdote. Em seguida, me soltaram e utilizaram a minha poção para me
reanimar. Saímos da caverna lentamente, pois, com exceção do anão, estávamos todos
debilitados por causa do veneno das aranhas.
A primeira coisa que fiz quando
retomei as forças para falar foi agradecer Eobald. Ele não poupou esforços para
vir atrás de mim, mais uma vez. Talvez todos os anos que passei sozinho, com
Calion, nas florestas, tenham me tornado alguém independente, arrogante,
autoconfiante e receoso em relação a outras pessoas. Mas, naqueles últimos dias, percebi que o trabalho em
equipe era essencial e que nem sempre se consegue tudo sozinho. Não há vergonha
alguma em precisar de ajuda, na verdade, vergonhoso é precisar de ajuda, e não
admitir. Eu costumava ser vergonhoso.”
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