“Lembram-se da autoconfiança, a
qual eu citei anteriormente? Pois é, esqueci-me de comentar que ela também
pode ser traiçoeira! Costumo dizer que nada nesse mundo é absoluto e, permita-me
a redundância, em absolutamente tudo, há prós e contras. Calion me lembrava,
insistentemente, todos os dias, em todos os treinamentos, que toda ação tem uma
reação e que eu deveria, sempre, ponderar as opções e escolher o próximo passo
com sabedoria. Nunca disse isso abertamente a ele, mas, na verdade, ele não
precisava me lembrar disso, afinal, eu havia aprendido essa lição com seis anos
de idade, ao presenciar a morte do meu pai. A ação do nobre que ordenou aquela
chacina resultou na minha reação: matar todos da sua linhagem. Mas, enfim, isso
é outro assunto. Sem mais devaneios, o ponto o qual eu quero chegar é que a
autoconfiança é, sim, de fato, uma grande aliada, não só em batalha, mas em
qualquer coisa que você faça na vida. Ela faz com que você não hesite, que você
aja como se estivesse fazendo o seu melhor e isso, consequentemente, o transforma
no melhor. Não há espaço para titubeios. Mas, há espaço para cegueiras e, isso
acontece, geralmente, quando a arrogância se sobrepõe. A certeza de que
você não titubeará passa a ser a certeza de que ganhará. Assim como um
cavalo no cabresto você passa a enxergar apenas um caminho: a vitória. Torna-se
descuidado, não pondera as opções e os diversos cenários que a sua ação pode
desencadear. Dizem que o pior cego é aquele que não quer ver. Acho que essa
definição se encaixa perfeitamente a esse relato.
Na manhã seguinte ao ataque das
aranhas gigantes, Bastur, o mago da guilda de Lua Argêntea, responsável pelo
contato conosco nos últimos dias, apareceu conforme programado. Nossa aparência era
terrível, com exceção do anão. Parecia que estávamos com uma ressaca daquelas e
que a noite anterior havia sido uma farra completa. Talvez, num primeiro
momento, Bastur tenha pensado isso. Mas o sacerdote deu-se o trabalho de explicar
o que havia acontecido. Aquilo não me agradava, dar satisfações a alguém. Na
minha concepção, rebaixar-se a alguém é perder a essência de si, é atestar que
o outro é melhor que você. Por isso, eu falava apenas o necessário para
descobrir o que me interessava. A conversa se prolongou por alguns minutos até
que o mago, finalmente, tocou em um assunto o qual me interessava:
– Enfim, a minha vinda até aqui é
para informa-los que conseguimos obter algumas informações do Gnomo.
– E quais são? – perguntou Edwin,
visivelmente curioso a inquieto.
– Bom, descobrimos o que é a
criatura de pele roxa – segundos de silêncio se passaram e, percebendo que
estávamos aguardando a resposta, o mago de Lua Argêntea continuou – Na verdade,
chegamos a uma conclusão por meio de fragmentos de informações que o Gnomo nos
forneceu, porque se fôssemos esperar uma resposta concreta, direta, por parte
dele, não conseguiríamos nada. Ele é uma criatura inocente, sabe? A única coisa
que interessa para ele é um pedaço de papel, tinta e pena para que possa
desenhar suas maluquices e genialidades. Enfim, a criatura a qual ele comentou
é um Ogro, Mago, de duas cabeças – nos olhou em seguida para analisar a nossa
reação.
A partir dai Eobald e Edwin
questionaram várias coisas para Bastur, que respondeu o que conseguiu, dando
dicas sobre a criatura, como as magias que ele poderia utilizar contra nós,
seus pontos fracos, sua habilidade de regeneração, entre outras informações. Ao
final, quando não havia mais perguntas e o silêncio reinou por mais de trinta segundos, o mago de Lua Argêntea disse:
– Vejam, tenho outra notícia. Uma
proposta, na verdade. Assim que soubemos que a criatura era essa, conversamos com
nossos superiores e decidimos pagar-lhes por seus serviços até o momento – ele
parou por um instante, novamente para ver a nossa reação de surpresa e seguiu –
E, a partir disso, faremos a seguinte proposta: se aceitarem entrar e eliminar
o Ogro, lhes concederemos um item mágico, digo, adicionaremos um benefício
mágico em algum equipamento que vocês possuam. A convivência com um Wyvern é
tranquila e podemos até utiliza-o a nosso favor, mas, um Ogro Mago não é uma
boa companhia e tenho certeza de que ele pensa o mesmo de nós.
Olhamo-nos por alguns segundos, intrigados e até mesmo surpresos com tal proposta. Como ninguém se prontificou a aceitar ou pelo menos dizer algo, questionei:
– Quanto tempo temos para lhe dar
a resposta?
– Hmm, até o final dessa
cavalgada, mestre elfo – ele respondeu.
– Certo, e o nosso pagamento até
agora? – questionei-o.
– Oh, está aqui – disse o mago,
voltando-se para seu cavalo e abrindo duas bolsas presas a lateral
esquerda do mesmo. Em seguida, retirou quatro pequenas bolsas e nos entregou –
duzentas peças de ouro para cada um – disse ele.
Trocamos alguns olhares, satisfeitos com a recompensa e, logo, começamos uma conversa sobre a proposta
que nos foi feita. Bastur, excluído da conversa, interrompeu-nos para se
despedir e, num passe de mágica, sumiu. Voltamos à calorosa discussão sobre o
que faríamos, ponderamos algumas opções, mas não chegamos a uma decisão final.
Ao invés disso, Eobald e Edwin informaram que precisariam ir até a cidade para
comprar alguns itens, enquanto eu e Oskar ficaríamos na base montada diante da entrada
da caverna. Solicitamos que os dois comprassem vinho, afinal, merecíamos uma
pequena comemoração pelas conquistas até ali. Bastur havia comentado que o
outro grupo que ainda restava, não retornara desde o dia anterior, o que fazia
de nós o único grupo sobrevivente até então. Mais um motivo para comemorar, ou
não.
Algumas horas depois, o mago e o
sacerdote retornaram, trazendo o vinho que pedimos, além, é claro, dos itens
que precisavam. Edwin comprara dez litros de vinho comum enquanto Eobald nos
presenteara, a mim e ao anão, com dois litros de vinhos especiais, acondicionados
em dois recipientes de cerâmica de ótima qualidade. Oskar bebeu uma das
garrafas como se fosse água, eu os guardei para outra ocasião.
Assim que os dois terminaram de
se organizar, nos reunimos e conversamos sobre o que faríamos. Naquele tempo em
que eles estiveram fora, pensei no que poderíamos fazer e disse-lhes:
– Bom, em todas as vezes que entramos
na caverna eu nunca havia percebido vestígios da existência de aranhas. Há
vários motivos para elas aparecerem nesse momento, pode ter sido uma simples
coincidência ou, o que eu julgo o mais provável, elas foram incitadas pelos
goblins, utilizando-as para fazer o trabalho que eles não conseguiram até então:
matar-nos. Se podemos tirar algo de bom dessa última luta com as aranhas, é que
agora conhecemos todas as partes da caverna por onde passamos, desde a entrada até o casebre do Gnomo e, diante
disso, sabemos que as únicas criaturas, com exceção dos goblinóides, que ainda
restam em nosso caminho, são os morcegos. Nada impede os goblins de utilizarem
eles para nos atacar, assim como fizeram com as aranhas. Enfim, resumindo, minha
sugestão é entrarmos agora e irmos até os morcegos, os matamos e voltamos para
cá. Amanhã seguimos adiante. O que acham?
Todos concordaram e, diante disso,
começamos a nos arrumar para mais um ataque ao interior da grande formação
rochosa. Como iríamos somente até o salão dos morcegos, faríamos o que tínhamos
de fazer e voltaríamos. Teoricamente seria rápido e não nos preocupamos em
traçar estratégias ou programar um plano B. A nossa autoconfiança estava à flor
da pele e sabíamos que seria fácil, rápido e logo estaríamos sentados à entrada
da caverna novamente, comendo carne de lebre assada, bebendo um bom vinho e
jogando conversa fora. Bom, esse era o plano inicial. Na verdade, esse era o único
plano.
Avançamos pelos corredores e
salões sem maiores problemas. Chegamos rapidamente ao corredor que levava ao
grande salão dos morcegos. Assim que nos aproximamos, Edwin fechou a lanterna
furta fogo, escurecendo tudo ao nosso redor para que Oskar pudesse utilizar sua
visão, melhorada no escuro, e verificar quantos morcegos estavam no local. Eu
estava pensando em algumas estratégias de como acabar com eles quando Oskar
voltasse com mais informações: se estivessem todos juntos, alguém poderia jogar
uma garrafa com óleo e, em seguida, eu atiraria uma flecha com fogo ou,
poderíamos preparar uma garrafa com óleo para explodir com o impacto ao ser
lançada em direção as criaturas, não era nada difícil, afinal, eu tinha tecido,
tínhamos formas de fazer fogo e um clérigo ou anão ambos com força suficiente
para lançar o vidro. Esses pensamentos fluíam em minha mente e a vitória era
certa. De repente, no meio desse devaneio vitorioso, um ruído quebrou o
silêncio que pairava no ar. Lembrei-me nesse exato momento de que não havíamos pensado
no que faríamos se eles acordassem antes de conseguirmos ataca-los. Não pensei
no que faríamos se os sons dessa luta atraíssem mais robgoblins. No que
faríamos se os morcegos fossem mais fortes do que eu imaginava. Fomos
negligentes. Fui, negligente. Logo eu, treinado para traçar estratégias de
ataques furtivos, para perceber os detalhes, as situações, as ações e reações. Não
percebi o óbvio: se eles utilizaram as aranhas contra nós eles com certeza utilizariam os
morcegos e já estariam nos esperando para isso. Bastava adentrarmos ao salão e ficarmos no alcance dos morcegos. No mesmo instante em que esse balde de água fria gelou a minha espinha de cima a baixo, escutei passos
do outro lado da grande sala, do lado oposto de onde Oskar estava e, em seguida, um
barulho curto, como se uma pedra batesse contra alguma superfície no meio do
salão. Os passos tornaram-se rápidos e estavam seguindo para o corredor a nossa
frente, afastando-se. Sons de asas se abrindo, cortando o vento, começaram a
surgir. Edwin abriu novamente a lanterna furta fogo, iluminando a sala e,
então, vimos as grandes criaturas sobrevoando o local e vindo em nossa direção.
O anão voltara correndo, gritando ‘PREPAREM-SE!!’. Tentei reformular todos os
meus pensamentos e estratégias. Não seria difícil acerta-los com minhas flechas,
mas, talvez fosse difícil para o anão e para o sacerdote acerta-los do chão,
tendo em vista que eram criaturas extremamente ágeis. Diante disso,
rapidamente, pensei em imobilizar pelo menos um deles com minha rede de pesca
e, em seguida, começar a distribuir minhas flechas pelo salão. Pensando nisso,
guardei meu arco e minha flecha e comecei a tatear a minha bolsa a procura da
rede. Nesse momento, recebi uma pancada seguida por um corte no rosto. Esses
animais eram muito rápidos. Assim que achei o que queria, retirei da bolsa e,
no momento em que abria a rede para lança-la ao ar, um dos morcegos que estava
atacando Edwin veio para cima de mim. Só então percebi que o mago havia
sucumbido aos ataques do predador. Fiz um movimento a fim de lançar a rede em
cima desse morcego, mas ele foi mais rápido e acertou-me um ataque feroz, na
cabeça, fazendo-me tombar para trás. Tudo ficou embaçado. Meus sentidos estavam
alterados, não conseguia ouvir nada além de um zumbido. Não conseguia me mover,
estava fraco. As palavras não saiam. Nesse tempo, forçando meu corpo a voltar a
me obedecer, pude ver Oskar caindo, sem controle do próprio corpo. Sucumbira
também aos ataques. Antes disso, lembro-me de ter visto o sacerdote pegar o
mago, joga-lo no ombro, gritar algumas palavras, as quais não escutei, olhando para mim e, em seguida,
correr. Ele estava fugindo, salvando Edwin, pensei. Parei de tentar retomar
o controle do meu corpo. Interrompi qualquer tentativa de me mover. Recostei a
cabeça ao chão. Olhei para o escuro da caverna. Concentrei-me nos sons ao meu redor e tudo o que eu ouvia eram as asas dos grandes animais cortando o vento acima de mim. Eobald e Edwin não conseguiram, pensei comigo. Fechei os olhos. Quando
os abri novamente, eu estava fora da caverna, como num passe de mágica, tal qual
Bastur usara para ir embora horas antes. Estavam todos lá, na nossa humilde base que montamos na
entrada da caverna e que há dias era o nosso lar. Entretanto, havia mais árvores, o sol estava no seu auge e
um lindo lago azul umedecia a paisagem. Pássaros voavam e cantavam alegremente.
Nuvens dançavam no céu ao som da brisa leve e morna de verão. Sorri. Fechei os
olhos para não mais abri-los e deixei-me levar pelo êxtase do fim.”
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